Wednesday, March 26, 2008

O cheiro e o bandido: dois momentos do cinema brasileiro

“O Cheiro do Ralo” e “O Bandido da luz Vermelha” são longas-metragens realizados com estilos e em épocas diferentes. Entretanto, é possível discutir ambos os filmes se os apreendermos como registros de uma história do Cinema Brasileira na sua saga em relação ao capitalismo contemporâneo. Dhalia e Sganzerla escolheram para personagem principal de seus filmes o fascinante e indigesto anti-herói e, como cenário, a cidade de São Paulo. Porém, as semelhanças param por aí. O momento histórico em que essas produções foram realizadas é crucial para o entendimento de suas concepções estéticas e narrativas distintas.
“O Bandido da Luz Vermelha” produzido em 1968, nasceu num momento em que o Cinema Novo perdia o fôlego de se renovar enquanto linguagem, mas herdando deste o uso já difundido da “câmera na mão”. Assim, surgia o “Cinema Marginal” no qual “Bandido” inaugura o movimento, rompendo com o estilo cinema-novista. A película acompanha, numa narrativa instável, o burburinho criado pelas ações de um ladrão, assassino e estuprador que representava uma metáfora da ação do poder repressor. O abandono da “masturbação” intelectual, responsável e politicamente correta do cinema precedente, para estabelecer um diálogo com os subgêneros de Hollywood, principalmente o filme B, trouxe ecos de humor negro e gozação. Inteiramente elaborado a partir dos restos da produção industrial da cultura de massas, o cenário do filme não é mais o Brasil aristocrata e rural da geração de Glauber. Pelo contrário, é urbano, encontrando identidade na sociedade de consumo. As ruas do subúrbio paulistano, a pobreza e o lixo industrial são desnudados pelo P&B para compor quadros com traços rebeldes, próprio do abjeto e ignóbil, como espremer uma espinha ou tirar cera do ouvido. A inovação estética de “Bandido” estabelece relações com planos curtos e a fragmentação caótica da nova realidade social. Sem didatismo, as cenas têm uma autenticidade absurda ao tratar temas, como o desenvolvimento industrial e sua inerente desigualdade social, de forma irônica: “um país sem miséria, é um país sem cultura e o que a gente vai mos para os turistas?”. Apesar, de Sganzerla estabelecer uma comunicação ativa com o grande público, rescindindo com os filmes sérios “ininteligíveis”, seu primeiro filme do “Cinema Marginal” continha elementos indigestos, abortivos do instável tripé da produção cinematográfica brasileira. Isso foi comprovado em filmes posteriores do “Cinema Marginal” quando no momento da produção sabia-se das chances mínimas de serem exibidos no circuito comercial. Essa indisposição em abrir mão da proposta política e ideológica dos realizados da “Boca do Lixo” para ganhar o mercado exibidor está presente no “Bandido” na possível metáfora: “quando não se pode fazer nada, a gente avacalha e esculhamba”.

“O Cheiro do Ralo” estreou no Festival do Rio na edição de 2006, depois de quase 40 anos da produção de Sganzerla, realizado dentro de uma outra proposta. Percebe-se que há um esforço do diretor para buscar um tratamento “viável” ao roteiro com relação à adaptação da literária do livro homônimo de Lourenço Mutarelli. De caminhos labirínticos, o roteiro faz curvas sinuosas, traça planos retos e evidência personagens rasos. O fato é que o filme narra a história de Lourenço, que compra e vende objetos usados na sua loja, mas pouco sabe-se sobre ele durante os 105 minutos. O tema é a desumanização, própria da relação de consumo; da frieza e da objetividade na relação venda-compra travada pelo personagem principal. O vazio, a solidão, o oco em que ele se tornou seria a pretensão da essência fílmica na construção dramática, evidenciadas pelas suas obsessões por comprar bugigangas de pouco valor útil (e de troca), que passam a carregar conotações sentimentais. A personificação do pai através do “olho de vidro” e da “perna mecânica” é uma alusão a uma espécie de vida que esses objetos ganham na medida em que se verifica nenhuma complacência pelas pessoas ao venderem, por necessidade, seus pertences de estima. Porém, o filme não convence. Isso pode ser entendido pela ótica da produção, numa tentativa de aproximação do cinema nacional, de autor, das bilheterias. Dhalia diz que depois do seu primeiro longa “Nina” (2004) considerado “pesado” para atingir o público, decidiu fazer um filme mais leve. Essa tentativa é evidente no uso do humor negro para tornar palatável a vários gostos e possibilitar a identificação do espectador com Lourenço, inclusive na escolha do ator Selton Mello, considerado carismático pelo espectador. Assim, o filme integra anti-herói através da sua coerência estilística de enquadramentos e da impecável direção de arte, deixando artificialmente clean o submundo de “O Cheiro do Ralo”, e dessa forma, criando um descompasso entre a proposta dramatúrgica e o resultado plasticamente belo e oco de “O Cheiro do Ralo”.
A comparação da estética dos dois filmes na antítese “grotesco x glamour”, relacionada à viabilidade econômica, é reveladora da realidade do cinema nacional. De um lado, “O Bandido da Luz Vermelha”, rebelde ao esquema de produção vigente no fim da década de 70, inovou trazendo a contracultura da marginalidade para ganhar vida imagética, e de outro, “O Cheiro do Ralo”, desejando integrar-se ao mainstream na primeira década do século XXI, cuja política existente é a do mecenato, prevalecendo à estética aceita pelo mercado. Portanto, é interessante notar tanto Sganzerla como Dhalia tem suas obras marcadas pela dificuldade de produzir filmes e assisti-los nas salas do mercado exibidor e pelo evidente desejo da imaginação bater asas a 24 quadros por segundo.

Rubro como a esperança


La última mirada – Direção e roteiro: Patrícia Arriaga Jordan. Fotografia: Hector Ortega. México, 2006. Duração: 124 min.
O vento balança as cortinas estendidas sobre a cama e as manchas vermelhas sobre o lençol persuadem o espectador para o que sucedeu ali, naquele quarto de bordel. As imagens iniciais de La última mirada, de Patrícia Jordan, aguçam os sentidos pela bela construção do quadro, importante no desenvolvimento da narrativa. Permeando todo filme, essa cena estrutura a trama através de flashbacks e montagem paralela ao acompanhar a vida de seus dois personagens principais até o momento que eles se encontram.
Homero (Sergi Mateo) descobre que está ficando cego, podendo ver somente três cores, por poucos meses, até a perda da visão total: o verde, depois o azul e por fim, o visceral vermelho. Como a luz que se decompõe em espectros de cores, o artista plástico se depara com a perda do sentido visual para sua vida. Mei, personagem de Marisol Centeno, vive com seus avós, tendo que trabalhar na limpeza de um bordel após sua mãe ter partido para os EUA. Diante da dura realidade da sua condição social, a garota de 15 anos enfrenta o precoce início da vida adulta, ainda com seus jovens sonhos. Ambientado numa sociedade machista, mercantil e violenta do deserto mexicano, os dois personagens parecem ser um dos poucos oásis de humanidade que resistem ao endurecimento imposto pela sobrevivência. A adolescente Mei convive com o assédio dos homens e o medo de que a necessidade obrigue-a a seguir a mesma profissão da mãe, a prostituição. Por outro lado, temos o pintor que enfrenta o desafio da cegueira e o imperativo de reaprender a viver sem um dos sentidos. As duas vidas distantes e paralelas se entrelaçam pelo universo sensível representado pelas poesias do “Galeão Chinês”, livro do pai de Homero, e pela mariposa bordada de Mei que, como doações recíprocas, se cruzam, chegando às mãos dos personagens através do taxista, freqüentador do Bordel.
Patrícia Jordan, numa linha tênue entre o melodrama e a poesia, nas esferas do amor de salvamento, promove o encontro do homem de classe média com a adolescente pobre de maneira interessante. O quarto do bordel é onde a situação se resolve. Homero paga uma “chinesinha” pra ter a sua última visão e Mei por pressões econômicas da avó é forçada a servi-lo. O momento em que ele molha as mãos na tinta vermelha e cobre todo o corpo da atriz Marisol Centeno é surpreendente pela atuação dos atores, da maneira em que a seqüência se define e, principalmente, pela fotografia, maravilhosamente bem dirigida durante todo o filme.
O longa-metragem de Patrícia Arriaga Jordan está entre aqueles filmes que a imagem importa tanto quanto a estrutura narrativa. Juntamente com a direção de arte, o fotógrafo Hector Ortega consegue planos coerentes e bem compostos, apreendendo o público na representação visual fílmica. Certamente, La última mirada é a pérola da mostra competitiva de ficção do Cinesul de 2007, na sua 14ª edição. O maravilhoso relato da cegueira ou tendo a ternura como saída, o filme conduz o espectador em tons de vermelho até que seja somente branco.

Walter Carvalho e sua poesia imagética

I. Walter Carvalho, Terra Estrangeira (1995).

Vejo o navio ao fundo e, em primeiro plano, a entrega. O abraço de quem ama salta aos olhos, comove. A fotografia de Terra Estrangeira (Daniela Thomas e Walter Salles, 1995) não diz isso, mas faz-se sentir. O lirismo captado pela objetiva de Walter Carvalho declama poesia. Não precisa de palavras. A imagem explode em seu total sentido. O studium, conceito usado por Roland Barthes em A Câmera Clara, é deflagrado no enquadramento do casal. Disposto à esquerda, fugindo do viés comum e fácil da centralidade, abre espaço para comunicação com o ambiente em que estão. A cena do casal é espetacular, mas os olhos do espectador estão no infinito do horizonte possibilitado pela presença do navio no lado direito do quadro. Este é o punctum, outro conceito de Barthes. A imensidão do mar e o velho navio (abandonado? Restos de algum naufrágio de outrora?) se desfazendo com o sal, água e ar. Nem o aço resiste ao tempo. A disposição no canto superior direito permite expandir o espaço para dentro do quadro. A profundidade de campo amplia a vastidão de uma terra de ninguém. A natureza está ali, adjetivando o universo amplo, vasto e solitário. O que move na fotografia vai além da beleza da composição P & B e seus contrastes entre o branco e preto total - nuances do cinza. De olhos fechados, em foco, vemos Alex (Fernanda Torres) agarrada a alguma esperança. O vento balança seu cabelo. Fios de vida. Paco (Fernando Alves Pinto) a mantém junto ao seu corpo, abraçando-a pela cintura. Doação. Súbita paz do encontro. Transcendência. Todo sentimento se faz ao espectador no convite para adentrar a fotografia, a pintura, a poesia. Contemplação da inexistência do corpo completamente perdido no sabor do tempo, tempo de alguma coisa.


II. Walter Carvalho, Lavoura Arcaica (2001).


Para que razão quando a vida se faz por um instante de súbita alegria? No ritmo frenético das células em atividade – pois é vida – observamos sem foco a moça que dança e ninguém vê. O studium é identificado pelo enquadramento dela, da cintura para cima, à esquerda do quadro e a multidão à direita. Em perspectiva, vemos várias garotas enfileiradas como se fossem formar um círculo, dando profundidade ao campo. Elas olham o centro da possível roda. Porém o olhar do espectador está no primeiro plano, na imagem desfocada da personagem de Simone Spoladore. Mesmo que sem foco, é nela que encontramos beleza. Não há necessidade de nitidez para sentimentos que extravasam a alma. Longe de ofuscar, acentua os movimentos, provoca o lirismo. Em cores pastéis os personagens, no fundo preto, saltam aos olhos. A rosa vermelha no cabelo dela é o detalhe que punge. O punctum. O contraste da fotografia é maior que simples divisão entre o lado direito e esquerdo. É de sentimentos: o inebriante pulso de contentamento da moça e a multidão, alheia a qualquer descoberta, assiste e não vê. Parafraseando Barthes, “a vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões”.
Referências:
BARTHES, Roland. A câmera clara. Ed. Nova Fronteira. RJ, 1984.

O tempo da usina

"... e o tempo engoliu a usina,
a mim e outro lugar que o diga,
que o tempo vence no fim,
um dia ele engole a usina,
como engole a ti e a mim”

Profeticamente inicia-se “Baixio das Bestas” de Cláudio Assis. O engenho. A usina. O tempo. A excelente seqüência inicial anuncia o filme. Um velho conduz uma garota para ficar sob um feixe de luz, desnudando-a. A câmera se afasta, ampliando o quadro para um plano geral, apresentando-nos a platéia de homens excitados. Perde a nitidez do restante do quadro para ter em foco o rosto de Caio Blat resmungando baixinho. A câmera enquadra a cruz da igreja ao lado e ouve-se: “filho da puta!”. Os personagens são apresentados nas cenas seguintes. Heitor cuida de Auxiliadora, sua neta de 16 anos, levando-a frequentemente ao pátio ao lado da igreja, atrás do posto, para que os caminhoneiros paguem-no para a assistirem nua. Blat é Cícero, filho mimado de classe média, estuda em Recife durante a semana por vontade da mãe.
A narrativa se desenvolve no interior de Pernambuco. O lócus no qual Cláudio Assis irá desenvolver sua trama é o nordeste decadente, esquecido pelas regiões metropolitanas. O tema: as tensões de uma sociedade hipócrita e perversa. As relações se estabelecem através do consumo e da violência. A sordidez da classe média é representada pelos “agreste-boys”, Everaldo (Matheus Nachtergaele) e Cícero (Caio Blat). A morbidez dos jovens, “donos” da cidadezinha, contra o cotidiano vazio preenchido por drogas e prostituição. Eles não querem somente gozar, necessitam pisar na cabeça e mostrar “quem manda em quem”. Entretanto, a crueldade não é privilegio da classe média, os despossuidos também a exercem, seja na relação entre as prostitutas, Dora (Dira Paes) e a personagem de Hermilla Guedes, ou na incestuosa exploração da neta pelo avô. A sociedade que nos fala Assis é aquela de “quem pode mais come o outro”. Há certa dose de exagero na desumanização desses personagens, entretanto, necessária para enxergar a estrutura social que estão inseridos. A cultura popular, simbolizada pelo maracatu rural, é único fator humanizador daquele povo. Todavia, Everaldo nos alerta: sabe o que é o melhor no cinema? É que no cinema tu pode fazer tudo o que tu quer, conferindo uma ambigüidade já que “no cinema” pode ser tanto o espaço retratado na mise-en-scène, onde os “agreste-boys” se reúnem para bebedeiras, como o exercício da ficção na atividade cinematográfica.
O realismo das imagens nos convence da existência desse Brasil arcaico, remoto para um outro, tecnológico e urbano. Os atores maravilhosamente dirigidos e o tom documental dessas imagens corroboram para desvendar uma sociedade sempre atual em vários sentidos, basta ater para sua forma e relativizá-la com suas roupagens de “modernidade”. As contradições permanecem.
As imagens são brilhantemente captadas pelo diretor de fotografia Walter Carvalho e pelo câmera Lula Carvalho. A predominância é de sombras. A luz difusa é tênue, carregada de dramaticidade. A cena do estupro de Dora (Dira Paes) no cinema, omissa no seu realismo cru, é criativa na sutil projeção de espectros na parede, nem por isso, menos violenta. A composição do espaço e do tempo fílmico é registrada pelo desenvolvimento da ação, sem cortes. O caminhar da Auxiliadora; a sua espera pela pirua; o seu banho no rio; os trabalhadores na carroceria do caminhão, pela manhã, indo para o corte da cana; e Heitor colocando insetos na garrafa são alguns exemplos da construção de um tempo calcado na ação dos personagens. Assis cria, com maestria, uma atmosfera monótona, de uma miséria humana que se arrasta pelo filme inteiro. O tempo é marcado pela construção da fossa no quintal de Heitor e pela transformação da paisagem das plantações de cana-de-açúcar para a terra árida, sem plantio, depois das queimadas. Elemento fundamental no filme, o tempo é melhor compreendido por ciclos: da funcionalidade da Usina, do dia/noite e na vida de seus personagens, particularmente representado na transformação de Auxiliadora em prostituta, ocupação também de sua mãe, sugerida nos diálogos de Heitor (cabe aqui lembrar que todas mulheres do filme, com exceção da mãe de Cícero, trabalham com prostituição). A renovação desses ciclos também é reiterada no diálogo do personagem de Caio Blat quando menciona o boato de que Auxiliadora seria filha do avô, que continua a manter com a neta-filha uma relação incestuosa. A crueldade desses papéis ganha mais força na presença da omissão e da hipocrisia social. Maninho pergunta para o colega de Heitor: o senhor que é amigo dele, o senhor acha que ele fazia aquelas coisas lá com a menina? O outro responde: eu não sei e nem quero saber, tenho raiva de quem sabe (...). Aqui cabe também citar um outro dialogo dos mesmos, revelador das intenções de Assis:
- Tá sentindo um cheiro estranho?
-Deve ser da usina.
-ôxente homem, e eu não sei o que é cheiro de usina? É a podridão do mundo.
E assim, esses personagens, presos àquele lugar, permanecem à espera de um devir que não virá.