O cheiro e o bandido: dois momentos do cinema brasileiro
“O Cheiro do Ralo” e “O Bandido da luz Vermelha” são longas-metragens realizados com estilos e em épocas diferentes. Entretanto, é possível discutir ambos os filmes se os apreendermos como registros de uma história do Cinema Brasileira na sua saga em relação ao capitalismo contemporâneo. Dhalia e Sganzerla escolheram para personagem principal de seus filmes o fascinante e indigesto anti-herói e, como cenário, a cidade de São Paulo. Porém, as semelhanças param por aí. O momento histórico em que essas produções foram realizadas é crucial para o entendimento de suas concepções estéticas e narrativas distintas.
“O Bandido da Luz Vermelha” produzido em 1968, nasceu num momento em que o Cinema Novo perdia o fôlego de se renovar enquanto linguagem, mas herdando deste o uso já difundido da “câmera na mão”. Assim, surgia o “Cinema Marginal” no qual “Bandido” inaugura o movimento, rompendo com o estilo cinema-novista. A película acompanha, numa narrativa instável, o burburinho criado pelas ações de um ladrão, assassino e estuprador que representava uma metáfora da ação do poder repressor. O abandono da “masturbação” intelectual, responsável e politicamente correta do cinema precedente, para estabelecer um diálogo com os subgêneros de Hollywood, principalmente o filme B, trouxe ecos de humor negro e gozação. Inteiramente elaborado a partir dos restos da produção industrial da cultura de massas, o cenário do filme não é mais o Brasil aristocrata e rural da geração de Glauber. Pelo contrário, é urbano, encontrando identidade na sociedade de consumo. As ruas do subúrbio paulistano, a pobreza e o lixo industrial são desnudados pelo P&B para compor quadros com traços rebeldes, próprio do abjeto e ignóbil, como espremer uma espinha ou tirar cera do ouvido. A inovação estética de “Bandido” estabelece relações com planos curtos e a fragmentação caótica da nova realidade social. Sem didatismo, as cenas têm uma autenticidade absurda ao tratar temas, como o desenvolvimento industrial e sua inerente desigualdade social, de forma irônica: “um país sem miséria, é um país sem cultura e o que a gente vai mos para os turistas?”. Apesar, de Sganzerla estabelecer uma comunicação ativa com o grande público, rescindindo com os filmes sérios “ininteligíveis”, seu primeiro filme do “Cinema Marginal” continha elementos indigestos, abortivos do instável tripé da produção cinematográfica brasileira. Isso foi comprovado em filmes posteriores do “Cinema Marginal” quando no momento da produção sabia-se das chances mínimas de serem exibidos no circuito comercial. Essa indisposição em abrir mão da proposta política e ideológica dos realizados da “Boca do Lixo” para ganhar o mercado exibidor está presente no “Bandido” na possível metáfora: “quando não se pode fazer nada, a gente avacalha e esculhamba”.
“O Cheiro do Ralo” estreou no Festival do Rio na edição de 2006, depois de quase 40 anos da produção de Sganzerla, realizado dentro de uma outra proposta. Percebe-se que há um esforço do diretor para buscar um tratamento “viável” ao roteiro com relação à adaptação da literária do livro homônimo de Lourenço Mutarelli. De caminhos labirínticos, o roteiro faz curvas sinuosas, traça planos retos e evidência personagens rasos. O fato é que o filme narra a história de Lourenço, que compra e vende objetos usados na sua loja, mas pouco sabe-se sobre ele durante os 105 minutos. O tema é a desumanização, própria da relação de consumo; da frieza e da objetividade na relação venda-compra travada pelo personagem principal. O vazio, a solidão, o oco em que ele se tornou seria a pretensão da essência fílmica na construção dramática, evidenciadas pelas suas obsessões por comprar bugigangas de pouco valor útil (e de troca), que passam a carregar conotações sentimentais. A personificação do pai através do “olho de vidro” e da “perna mecânica” é uma alusão a uma espécie de vida que esses objetos ganham na medida em que se verifica nenhuma complacência pelas pessoas ao venderem, por necessidade, seus pertences de estima. Porém, o filme não convence. Isso pode ser entendido pela ótica da produção, numa tentativa de aproximação do cinema nacional, de autor, das bilheterias. Dhalia diz que depois do seu primeiro longa “Nina” (2004) considerado “pesado” para atingir o público, decidiu fazer um filme mais leve. Essa tentativa é evidente no uso do humor negro para tornar palatável a vários gostos e possibilitar a identificação do espectador com Lourenço, inclusive na escolha do ator Selton Mello, considerado carismático pelo espectador. Assim, o filme integra anti-herói através da sua coerência estilística de enquadramentos e da impecável direção de arte, deixando artificialmente clean o submundo de “O Cheiro do Ralo”, e dessa forma, criando um descompasso entre a proposta dramatúrgica e o resultado plasticamente belo e oco de “O Cheiro do Ralo”.
A comparação da estética dos dois filmes na antítese “grotesco x glamour”, relacionada à viabilidade econômica, é reveladora da realidade do cinema nacional. De um lado, “O Bandido da Luz Vermelha”, rebelde ao esquema de produção vigente no fim da década de 70, inovou trazendo a contracultura da marginalidade para ganhar vida imagética, e de outro, “O Cheiro do Ralo”, desejando integrar-se ao mainstream na primeira década do século XXI, cuja política existente é a do mecenato, prevalecendo à estética aceita pelo mercado. Portanto, é interessante notar tanto Sganzerla como Dhalia tem suas obras marcadas pela dificuldade de produzir filmes e assisti-los nas salas do mercado exibidor e pelo evidente desejo da imaginação bater asas a 24 quadros por segundo.
“O Cheiro do Ralo” estreou no Festival do Rio na edição de 2006, depois de quase 40 anos da produção de Sganzerla, realizado dentro de uma outra proposta. Percebe-se que há um esforço do diretor para buscar um tratamento “viável” ao roteiro com relação à adaptação da literária do livro homônimo de Lourenço Mutarelli. De caminhos labirínticos, o roteiro faz curvas sinuosas, traça planos retos e evidência personagens rasos. O fato é que o filme narra a história de Lourenço, que compra e vende objetos usados na sua loja, mas pouco sabe-se sobre ele durante os 105 minutos. O tema é a desumanização, própria da relação de consumo; da frieza e da objetividade na relação venda-compra travada pelo personagem principal. O vazio, a solidão, o oco em que ele se tornou seria a pretensão da essência fílmica na construção dramática, evidenciadas pelas suas obsessões por comprar bugigangas de pouco valor útil (e de troca), que passam a carregar conotações sentimentais. A personificação do pai através do “olho de vidro” e da “perna mecânica” é uma alusão a uma espécie de vida que esses objetos ganham na medida em que se verifica nenhuma complacência pelas pessoas ao venderem, por necessidade, seus pertences de estima. Porém, o filme não convence. Isso pode ser entendido pela ótica da produção, numa tentativa de aproximação do cinema nacional, de autor, das bilheterias. Dhalia diz que depois do seu primeiro longa “Nina” (2004) considerado “pesado” para atingir o público, decidiu fazer um filme mais leve. Essa tentativa é evidente no uso do humor negro para tornar palatável a vários gostos e possibilitar a identificação do espectador com Lourenço, inclusive na escolha do ator Selton Mello, considerado carismático pelo espectador. Assim, o filme integra anti-herói através da sua coerência estilística de enquadramentos e da impecável direção de arte, deixando artificialmente clean o submundo de “O Cheiro do Ralo”, e dessa forma, criando um descompasso entre a proposta dramatúrgica e o resultado plasticamente belo e oco de “O Cheiro do Ralo”.
A comparação da estética dos dois filmes na antítese “grotesco x glamour”, relacionada à viabilidade econômica, é reveladora da realidade do cinema nacional. De um lado, “O Bandido da Luz Vermelha”, rebelde ao esquema de produção vigente no fim da década de 70, inovou trazendo a contracultura da marginalidade para ganhar vida imagética, e de outro, “O Cheiro do Ralo”, desejando integrar-se ao mainstream na primeira década do século XXI, cuja política existente é a do mecenato, prevalecendo à estética aceita pelo mercado. Portanto, é interessante notar tanto Sganzerla como Dhalia tem suas obras marcadas pela dificuldade de produzir filmes e assisti-los nas salas do mercado exibidor e pelo evidente desejo da imaginação bater asas a 24 quadros por segundo.