Wednesday, March 26, 2008

O tempo da usina

"... e o tempo engoliu a usina,
a mim e outro lugar que o diga,
que o tempo vence no fim,
um dia ele engole a usina,
como engole a ti e a mim”

Profeticamente inicia-se “Baixio das Bestas” de Cláudio Assis. O engenho. A usina. O tempo. A excelente seqüência inicial anuncia o filme. Um velho conduz uma garota para ficar sob um feixe de luz, desnudando-a. A câmera se afasta, ampliando o quadro para um plano geral, apresentando-nos a platéia de homens excitados. Perde a nitidez do restante do quadro para ter em foco o rosto de Caio Blat resmungando baixinho. A câmera enquadra a cruz da igreja ao lado e ouve-se: “filho da puta!”. Os personagens são apresentados nas cenas seguintes. Heitor cuida de Auxiliadora, sua neta de 16 anos, levando-a frequentemente ao pátio ao lado da igreja, atrás do posto, para que os caminhoneiros paguem-no para a assistirem nua. Blat é Cícero, filho mimado de classe média, estuda em Recife durante a semana por vontade da mãe.
A narrativa se desenvolve no interior de Pernambuco. O lócus no qual Cláudio Assis irá desenvolver sua trama é o nordeste decadente, esquecido pelas regiões metropolitanas. O tema: as tensões de uma sociedade hipócrita e perversa. As relações se estabelecem através do consumo e da violência. A sordidez da classe média é representada pelos “agreste-boys”, Everaldo (Matheus Nachtergaele) e Cícero (Caio Blat). A morbidez dos jovens, “donos” da cidadezinha, contra o cotidiano vazio preenchido por drogas e prostituição. Eles não querem somente gozar, necessitam pisar na cabeça e mostrar “quem manda em quem”. Entretanto, a crueldade não é privilegio da classe média, os despossuidos também a exercem, seja na relação entre as prostitutas, Dora (Dira Paes) e a personagem de Hermilla Guedes, ou na incestuosa exploração da neta pelo avô. A sociedade que nos fala Assis é aquela de “quem pode mais come o outro”. Há certa dose de exagero na desumanização desses personagens, entretanto, necessária para enxergar a estrutura social que estão inseridos. A cultura popular, simbolizada pelo maracatu rural, é único fator humanizador daquele povo. Todavia, Everaldo nos alerta: sabe o que é o melhor no cinema? É que no cinema tu pode fazer tudo o que tu quer, conferindo uma ambigüidade já que “no cinema” pode ser tanto o espaço retratado na mise-en-scène, onde os “agreste-boys” se reúnem para bebedeiras, como o exercício da ficção na atividade cinematográfica.
O realismo das imagens nos convence da existência desse Brasil arcaico, remoto para um outro, tecnológico e urbano. Os atores maravilhosamente dirigidos e o tom documental dessas imagens corroboram para desvendar uma sociedade sempre atual em vários sentidos, basta ater para sua forma e relativizá-la com suas roupagens de “modernidade”. As contradições permanecem.
As imagens são brilhantemente captadas pelo diretor de fotografia Walter Carvalho e pelo câmera Lula Carvalho. A predominância é de sombras. A luz difusa é tênue, carregada de dramaticidade. A cena do estupro de Dora (Dira Paes) no cinema, omissa no seu realismo cru, é criativa na sutil projeção de espectros na parede, nem por isso, menos violenta. A composição do espaço e do tempo fílmico é registrada pelo desenvolvimento da ação, sem cortes. O caminhar da Auxiliadora; a sua espera pela pirua; o seu banho no rio; os trabalhadores na carroceria do caminhão, pela manhã, indo para o corte da cana; e Heitor colocando insetos na garrafa são alguns exemplos da construção de um tempo calcado na ação dos personagens. Assis cria, com maestria, uma atmosfera monótona, de uma miséria humana que se arrasta pelo filme inteiro. O tempo é marcado pela construção da fossa no quintal de Heitor e pela transformação da paisagem das plantações de cana-de-açúcar para a terra árida, sem plantio, depois das queimadas. Elemento fundamental no filme, o tempo é melhor compreendido por ciclos: da funcionalidade da Usina, do dia/noite e na vida de seus personagens, particularmente representado na transformação de Auxiliadora em prostituta, ocupação também de sua mãe, sugerida nos diálogos de Heitor (cabe aqui lembrar que todas mulheres do filme, com exceção da mãe de Cícero, trabalham com prostituição). A renovação desses ciclos também é reiterada no diálogo do personagem de Caio Blat quando menciona o boato de que Auxiliadora seria filha do avô, que continua a manter com a neta-filha uma relação incestuosa. A crueldade desses papéis ganha mais força na presença da omissão e da hipocrisia social. Maninho pergunta para o colega de Heitor: o senhor que é amigo dele, o senhor acha que ele fazia aquelas coisas lá com a menina? O outro responde: eu não sei e nem quero saber, tenho raiva de quem sabe (...). Aqui cabe também citar um outro dialogo dos mesmos, revelador das intenções de Assis:
- Tá sentindo um cheiro estranho?
-Deve ser da usina.
-ôxente homem, e eu não sei o que é cheiro de usina? É a podridão do mundo.
E assim, esses personagens, presos àquele lugar, permanecem à espera de um devir que não virá.

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